quinta-feira, 17 de abril de 2014

Em um momento de descrição

Na parede há um buraco branco, o espelho. É uma ratoeira. Sei que vou lá cair. Já está. A coisa cinzenta acaba de surgir no espelho. Aproximo-me e olho para ela; já não posso desviar-me.
É o reflexo da minha cara. Muitas vezes, nestes dias, perdidos, fico a contemplá-lo. Não percebo nada desta cara. As dos outros têm um sentido. A minha, não. Nem posso decidir se é bonita ou feia. Acho que é feia, porque mo disseram. Mas não é propriedade que me salte à vista. A bem dizer, até me surpreende' que se lhe possam atribuir qualidades desse género, como se se chamasse bonito ou feio a um bocado de terra ou a um bloco de rocha.
Há, todavia, uma coisa cuja vista dá prazer; por cima das regiões moles das faces, acima da testa: é esta bela labareda vermelha que me doura o crânio, são os meus cabelos. Isto sim, é agradável de se ver. É, pelo menos, uma cor nítida: estou contente por ser ruivo. Ali está ela, no espelho, salta aos olhos, irradia fogo. Muita sorte tenho eu: se a minha testa suportasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não chegam a decidir-se entre castanho e louro, a minha expressão perder-se-ia no vago, dar-me-ia vertigens. O meu olhar desce lentamente, com enfado, por esta testa, por estas faces: não encontra nada de firme, afoga-se. Evidentemente, aquilo é um nariz, aquilo são uns olhos, aquilo uma boca, mas nada disso tem sentido, nem sequer expressão humana. (A Náusea - Sartre)

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