Nunca sei como
iniciar um texto, mas esse é diferente. Começa com uma fotografia. É uma moça,
sentada num bar, o queixo apoiado sobre as mãos, olhos grandes e castanhos, cabelos negros,
sem simetria, um rosto diferente dessa harmonização facial degenerada, um largo sorriso, dentes bonitos, saudáveis. O sorriso e o olhar me marcaram. Gosto desse sentimento que os olhos e os sorrisos me causam, me arrepiam a pele.
Passava das
seis horas da manha quando acordei, ainda com os olhos cansados do dia
anterior. Ao lado da cama o toca-discos, uma coleção velha e gasta, apenas com
aqueles que são a bases do meu sossego diário. Highway 61 Revisited do Dylan é o que sempre fica sempre à frente na caixa dos discos, é rotina colocar para tocar Bllad of a thin man, música favorita de minha avó, faixa numero 5,
lado A. Vez ou outra coloco Belchior, Patty Smith, Pink floyd entre outros que versam a passagem caótica da vida, mas na maioria das vezes é Dylan. Fui ao banheiro, escovei os
dentes e tomei banho, dia comum, a mesma rotina.
Coloco o
casaco verde musgo, herança de minha falecida avó, a única que teve a decência de me ensinar a enxergar o mundo por trás das cortinas do espetáculo, aquela que me fez ver o truque do mágico. Saio. A claridade arde em meus olhos,
sempre que sinto esta sensação penso em comprar um par de óculos escuros, mas sempre torro meu dinheiro com maconha, alchool, discos e livros. Fui ao 'Café
da esquina', nome próprio do café que fica na esquina de onde moro, sem
criatividade, com aquelas pessoas zumbis, com aparência tão horrível
quanto a minha. E não digo aparência no mais chulo dos termos, mas no transparecer a ilusão de saber ser. Como já cantava o Canto de ossanha "O homem que diz 'sou' não é, porque quem é mesmo é 'não sou'". Dou uma olhada no local, sento no balcão e peço um café, preto,
sem açúcar, como água suja, um dos venenos que amortece a angústia de minha existência.
Todo dia a
mesma coisa, mesmo papo com o dono da cafeteria. “Será que chove?” “Viu o jogo
ontem?” e futilidades sobre o cotidiano. Tomo o café, pago e dou tchau. Ao levantar
esbarro em um homem, engravatado, boa pinta, meia-idade, desses que deve
trabalhar em uma grande empresa, casado, família de bem, mas que dorme com a
secretária. Ele pede desculpas e sai. Não fui com a cara do sujeito. Noto que
algo caiu de seu bolso, pensei em chamá-lo, mas o cara já havia saído.
Deparo-me com a tal fotografia, acho que perdi uns dois minutos admirando-a. Embasbacada parada no meio do caminho.
Não acredito
em destino, deus e nem em amor, mas sei que na minha mente alguma coisa mudou. Um gatilho. Fui
trabalhar sem ligar muito para o ocorrido, fiz tudo que meu plano de rotina
exige de mim, mas apenas ao chegar em casa me lembro da fotografia, admirei-a antes
de dormir, com um certa inveja de sua felicidade e beleza interior; dormi.
O
dia começa de novo, mas diferente, agora a fotografia vivia em meu bolso, ela me traz
certo alívio que não sei explicar. Nesse dia algo me fez mudar de ares. Levantei,
lado B, faixa 4, não fui tomar café, tomei um suco em uma lanchonete a umas
duas quadras da cafeteria, me arrependi, pois sem café meu dia fica mais
cansado do que já sou.
Viro
a esquina e me deparo com um sorriso, fico imóvel, é a tal moça dos cabelos
negros. O gatilho disparou uma bala que cravou em minha mente. Decidi não ir
trabalhar hoje. A segui, não pensei duas vezes. Sua postura que transmitia autenticidade tinha algo de virtuoso. Sua vitalidade e seu movimento, tudo me encantava. Sentia-me como uma pessoa
completamente apaixonada... não, admirada.
Tentei
chamá-la, mas as palavras não saiam de minha boca, o máximo que fiz foi olhá-la. Sentir aquilo me despertou. Ela me fez reinventar o mundo, aceitar que o começo e o fim estão interligados. Decidi largar o trabalho que eu odiava, me livrar do meu cansaço e estar em paz com o vazio. Assim ela se foi, cada vez mais longe
dos meus olhos e eu apenas sabia admirá-la. Ela foi. A fotografia ficou e a mudança do meu olhar sobre o mundo também. Marquei atrás da fotografia "Amor fati".
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